sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Conversão da cabeça aos pés



Sobre a trans­for­ma­ção da Igreja e do mundo, a par­tir de Atos 3.1–10

Não há dúvida de que Pedro e João eram homens pie­do­sos. O texto mos­tra que eles ora­vam três vezes ao dia no tem­plo. Não obs­tante, muita coisa ainda pre­ci­sava mudar em suas vidas. Senão, veja­mos: o texto tam­bém diz que havia um coxo que era levado dia­ri­a­mente à porta do tem­plo para pedir esmo­las, e que tinha mais de 40 anos (cf. 4.22). Isso nos faz pen­sar que Jesus deve ter cru­zado por ele em outras oca­siões quando visi­tou Jeru­sa­lém. Daí surge a per­gunta: Por que, então, Jesus não o curara antes? “Pedro e João subiam ao tem­plo para a ora­ção da hora nona”, i.e., às três horas da tarde. Isso tam­bém não é intri­gante? Pedro e João iam dia­ri­a­mente ao tem­plo, logo, cru­za­vam com o coxo todos os dias. E mais, naquele mesmo dia, já era a ter­ceira vez que Pedro e João pas­sa­vam pelo coxo. A pri­meira teria sido às nove horas e a segunda ao meio-dia, no tra­jeto rumo às suas ora­ções diá­rias. Por que só agora Pedro e João para­ram para falar com o coxo? Por que não o cura­ram antes? Parece que, de fato, Pedro e João nunca tinham visto aquele homem que, para nós, tipi­fica todas aque­las pes­soas a quem a Igreja deve alcan­çar com a men­sa­gem da salvação.

A nar­ra­tiva de Lucas deixa claro que foi pre­ciso haver pri­meiro a con­ver­são da “Igreja” (Pedro e João), para que depois hou­vesse a con­ver­são do “mundo” (coxo). Tal con­ver­são se deu em um pro­cesso fas­ci­nante: pri­mei­ra­mente foi neces­sá­ria a…

… Con­ver­são dos olhos
A reda­ção de Lucas repete tão insis­ten­te­mente os ver­bos olhar, fitar e ver que nos deixa des­con­fi­a­dos. Seria isso uma espé­cie de gagueira lite­rá­ria do autor ou, antes, uma admi­rá­vel trama nar­ra­tiva que pre­tende cha­mar a nossa aten­ção. Lucas parece inte­li­gente demais para optar­mos pela gagueira literária. Então, veja­mos a expres­são: “Vendo o coxo a Pedro e a João que entra­vam no tem­plo”. Este tipo de olhar carac­te­riza o olhar dis­pli­cente, é o ver sem enxer­gar. Com freqüên­cia a igreja olha o mundo da mesma forma. É por isso que, não raro, como Pedro, tam­bém nós pas­sa­mos por cima do “campo mis­si­o­ná­rio”, quase todos os dias, sem notá-lo?–?e faze­mos isso por tanto tempo.

Então, “Pedro fitando-o jun­ta­mente com João…”. O verbo fitar é o mesmo uti­li­zado para nar­rar o olhar de Jesus para o “jovem rico”, e sig­ni­fica, lite­ral­mente, olhar para den­tro (com olhar pene­trante). Isso sig­ni­fica que, até esse momento, o olhar da igreja (repre­sen­tada por Pedro) era um olhar super­fi­cial. E um olhar super­fi­cial só vê, obvi­a­mente, a super­fí­cie: um homem sujo, mal-cheiroso, de aspecto repug­nante… Mas, gra­ças a Deus, o olhar de Pedro se con­ver­teu. Ele con­se­guiu olhar para den­tro do homem, e viu, ali, uma pes­soa cri­ada à ima­gem e seme­lhança de Deus que deve­ria ser amada, res­pei­tada, e cuja dig­ni­dade deve­ria ser resgatada. Assim, Pedro lhe disse: “Olha para nós”. Isso mos­tra que, em geral, o olhar do mundo tam­bém é super­fi­cial em rela­ção à Igreja. Com freqüên­cia, as pes­soas espe­ram da Igreja ape­nas uma “esmola”: i.e., emprego, cura, casa­mento… Mas isso não passa de cos­mé­tica superficial.

Por isso, Pedro cor­rige o olhar do homem: “olha para den­tro de mim, não sou Pedro-o-primeiro-papa, não sou rico, não tenho prata nem ouro. Na ver­dade eu sou aquele que negou a Jesus três vezes, sou aquele que cor­tou a ore­lha de um ofi­cial, sou aquele que quis des­truir com fogo a uma cidade inteira, enfim, não sou nada, não tenho nada, mas o que tenho te dou: o nome de JESUS”. Só que não basta mudar o olhar, é pre­ciso que haja, ainda a…

… Con­ver­são das mãos
Imaginem-se no lugar do coxo, ouvindo Pedro dizer: “levanta-te e anda”. Pen­sa­ría­mos: “Ih, o papa pirou! Ele não per­ce­beu que eu nasci com limi­ta­ções físi­cas?” e con­ti­nu­a­ría­mos nossa vida, sen­ta­dos, esmo­lando à porta do templo. Pedro pre­ci­sou ser mais radi­cal: “e, tomando-o pela mão direita, o levan­tou”. A expres­são mão direita é car­re­gada de sig­ni­fi­ca­dos. Na tra­di­ção bíblica, reserva-se a direita para as pes­soas mais hon­ra­das, para aque­las que temos em mais alta conta. E, cá para nós, não dá pra levan­tar um defi­ci­ente físico só com um aperto de mão. Foi pre­ciso mais. Foi pre­ciso que Pedro e João se abai­xas­sem, o abra­ças­sem, sen­tis­sem de perto o seu cheiro e o sus­ten­tas­sem por algum tempo. Isso indica que Pedro e João fica­ram “con­ta­mi­na­dos”, pois a reli­gião de então con­si­de­rava ritu­al­mente impu­ros os defi­ci­en­tes físi­cos?–?e os impe­diam de entrar no tem­plo (por isso o coxo ficava “à porta”)?–?e con­si­de­rava igual­mente impu­ros aque­les que os tocassem.

É aqui que con­tem­pla­mos um qua­dro mara­vi­lhoso: a Igreja estende a mão ao mundo e o mundo estende a mão à igreja. Como na pin­tura A Cri­a­ção, de Miche­lan­gelo, na Capela Sis­tina: repre­sen­ta­ção terna do encon­tro divino-humano. E é de mãos dadas que a Igreja e o mundo pas­sam pela…

… Con­ver­são dos pés
Lucas conta que “logo os pés e arte­lhos [do coxo] se fir­ma­ram, e andou, e entrou com eles no tem­plo, andando, e sal­tando, e lou­vando a Deus”. Eis a mis­são da Igreja: aju­dar os seres huma­nos a se colo­ca­rem em pé nova­mente; a res­ga­ta­rem sua dig­ni­dade; a serem capa­zes de andar pelos seus pró­prios pés. Não cabe à Igreja car­re­gar as pes­soas (quer seja com seu pater­na­lismo, quer seja com sua repres­são mora­lista). Antes, seu papel é vê-las madu­ras, livres das supers­ti­ções, entrando por seus pró­prios pés na pre­sença de Deus.

Note­mos que o homem não entrou no tem­plo lou­vando a Pedro ou a João, nem a reli­gião que eles pro­fes­sa­vam. O homem pôde lou­var a Deus por­que os após­to­los não anun­ci­a­ram a si mes­mos. Antes, a Igreja reve­lou o olhar amo­roso de Cristo pelos excluí­dos, e estendeu-lhes os bra­ços aco­lhe­do­res de Deus.

Con­clu­são
Note-se que a ora­ção emol­dura esta nar­ra­tiva bíblica. A mis­são começa e ter­mina com ora­ção. A litur­gia é a “fonte e o ápice” da mis­são. Por isso ora­mos pela con­ver­são do mundo. Por isso ora­mos pela con­ver­são da Igreja. Mas ainda nos intriga a per­gunta: Por que Jesus não havia curado esse homem antes? Cer­ta­mente Jesus não pre­ci­sava ter os seus olhos con­ver­ti­dos, nem as suas mãos e, tam­pouco, os seus pés.

Tal­vez Jesus não tenha curado a todos os enfer­mos que encon­trou, pela mesma razão que não ali­men­tou a todos os famin­tos, nem evan­ge­li­zou a todos os povos. Por­que isso Cristo quer fazer com a nossa cola­bo­ra­ção. Curar o men­digo da porta For­mosa do tem­plo era tarefa para Pedro e João, e Jesus não faria isso no lugar deles. Da mesma forma, Pedro e João tam­bém não cura­ram, nem evan­ge­li­za­ram todas as pes­soas, mesmo depois dessa con­ver­são mar­cante. Ainda há muito tra­ba­lho a ser feito, e parte dele com­pete a nós ?–? nin­guém o fará em nosso lugar! Entre­tanto, só pode­re­mos cum­prir nossa mis­são se, ver­da­dei­ra­mente, nos con­ver­ter­mos inte­gral­mente, da cabeça aos pés. Se o pró­prio Pedro e até mesmo João pre­ci­sa­vam converter-se, que se dirá cada um de nós? Você gos­ta­ria de ganhar, hoje, novos olhos, novas mãos e novos pés? Eu quase nada posso lhe dar, mas o que tenho isso lhe dou: os meus olhos, as minhas mãos, os meus pés e o nome de Jesus.

Pastor Luiz Car­los Ramos (Em memó­ria do Rev. Elias Abraão, quem pri­meiro me con­ver­teu a este texto)

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