sexta-feira, 16 de abril de 2010

O serão dos animais

Memória

Bispo Scilla Franco (1930-1989)

O serão dos animais

Caía a tarde na granja, o Sol com seus raios dardejantes rasgava o firmamento que sangrava, tingindo-o de vermelho. O cavalo há tempo descansado coçava o queixo na lasca do chiqueiro onde o porco de barriga cheia roncava como um porco. O burro chega do trabalho, rola no chão (é a maneira dos burros espreguiçarem), vai lamber um pouco de sal no cocho, donde pode ver a TV a cores do granjeiro, e o cavalo inicia o diálogo.

-- Muito trabalho, compadre burro?
-- Coisinha à toa. É o maldito progresso que não respeita nem o sítio. Veja lá a TV a cores. Que desperdício! A máquina faz tudo, somos cada vez mais expectadores.
-- Isto é bom, -- atalhou o cavalo, -- vai chegar o dia em que não faremos além de correr pelos prados.
-- Bem se percebe a estreiteza de sua cavalar sabedoria. Os donos das máquinas entre os humanóides, querem todos a seu serviço e quando não mais servem...
-- Que ocorre? -- interrompe o cavalo assustado.
-- Até pareces que não acompanhas o noticiário... o desemprego, nunca ouviu falar nesse fantasma?
-- Confesso nada entender do assunto.
-- Pois é, eu explico: quando a sede do lucro não quer produzir mais dividendos para a classe patronal, duas são as medidas: achatamento salarial e automatização que permita dispensar os trabalhadores.
-- Não vejo mal algum. Afinal é o preço do progresso.
-- Bem se vê que és pouco maduro nas questões sociais. Milhares de trabalhadores sem emprego significa outros milhares de mulheres sem pão, sem leite, sem moradia decente... e convulsão social, meu amigo. E como conseqüência imediata vêm os ladrões, os mendigos, as doenças, a morte...
-- Cruz credo, -- interjecta o cavalo, -- ainda bem que não nos atinge! Não acha grande burrice que os homens fazem?
-- Burrice não, -- corrigiu o burro, --"homisse", isso sim. Não esteja tão tranqüilo, pois o nosso destino é virar mortadela quando essa situação chegar às fazendas. Isso é muito mais desonroso, porque o primeiro rótulo eles põem obrigatoriamente "produto feito com carne de cavalo". Ora, não sou cavalo, depois sempre tem os vivaldinos que colocam sobre o rótulo o aviso "com carne de vaca". Não é humilhante?
-- E eu que pensava que enquanto houvesse capim pelos campos eu pudesse correr livremente por eles...
-- Infelizmente, você não está só nesse pensamento. Há muita gente boa pensando assim e só se apercebam disso quando estão virando mortadela.

Houve silêncio entre os dois. O burro assumiu ares de filósofo. O cavalo apreensivo perguntou.

-- Mas... e os cristãos que aos domingos eu levo de charrete até a igreja? Eles vão cantando, nem parecem preocupados com este assunto.
-- Esse é o mal, -- lembrou o burro, -- há várias espécies deles: espiritualistas autênticos, coniventes e indiferentes, além de muitos outros.
-- Confesso que fiquei na mesma, -- afirmou o cavalo.
-- Os espiritualistas fazem jejuns e orações a favor dos oprimidos, mas nem sequer pagam salários às empregadas domésticas e muito menos lhes concedem o direito de um descanso semanal remunerado. Os autênticos também jejuam e oram, mas procuram identificar-se com os oprimidos, por isso, muitos acabam crucificados como seu Mestre, ou marginalizados dentro da própria igreja. Os esquerdistas acusam os direitistas e vice-versa. Quando não lhes conseguem colocar uma mordaça, fazem ouvidos moucos e eles continuam como jumento a zurrar nos ouvidos do profeta. Os coniventes procuram tirar proveito da situação e manter a posição social, tendo sempre alguns foguetes de reserva para soltar ao vencedor. Os indiferentes são como você. Não se preocupam enquanto houver o pasto. Ia me esquecendo... há também os festivos. Esses fazem manifestos e mandam telegramas às autoridades constituídas. Dizem-se solidários com os favelados, mas nunca pregaram uma tábua num barraco, são amigos dos índios, mas nunca enviaram a eles um quilo de semente. Existem outras espécies como aqueles que só fazem denúncias.
-- Pelo visto são poucos os chamados "cristãos", -- suspirou desesperançado o cavalo.
-- É, sempre foram poucos, meu caro! Do dilúvio sobraram oito, de destruição de Sodoma e Gomorra restaram três, da urna de fogo da Caldéia sobreviveu um, dos espias de Jericó ficaram dois. O próprio Cristo escolheu doze apóstolos e um o traiu.
O cavalo quedou-se preocupado como quem procura uma saída num jogo de xadrez. Enquanto isso, concentrava-se no vídeo.
-- Mas domingo quando voltávamos da igreja ouvi dizer que os metodistas vão chegar a 100 mil...
-- Silêncio, -- disse o burro. -- Vai começar outra novela.

Bispo Scilla Franco
Publicado originalmente no Jornal Expositor Cristão, 2ª quinzena de junho de 1979.

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