Pensando no pouco que há / Traços de nanquim |
I. A experiência na vida mostra que, ao enfrentar as aflições da vida, o ser humano tem, pelo menos, quatro diferentes reações:
Primeira reação:
Fugir e recusar-se a lutar pela superação dos problemas.
Contexto histórico: Por razões lingüísticas, provavelmente, o livro de Jonas foi escrito durante o período persa (século V ou IV a.C). Os que retornaram do exílio babilônico trouxeram uma boa experiência com os estrangeiros. Portanto, por que não falar, para eles, dos grandes atos de Deus? Entretanto, crescia, em Jerusalém, um grupo radical que insistia na identidade do povo da Aliança. Daí, a história de Jonas, o recalcitrante.
No AT, os relatos do chamado de Deus, para uma missão, mostram uma tendência repetitiva:
1. Deus chama;
2. A pessoa recusa aceitar a convocação;
3. Deus insiste no chamado;
4. A pessoa decide aceitar o chamado de Deus, e
5. Deus envia para uma missão a pessoa chamada.
Observação: O desafio dirigido a Jonas era anunciar a palavra de Deus aos ninivitas, porém ele fugiu, abandonando a missão.
Segunda reação:
Mentir com medo de ameaças.
Contexto histórico: Jesus encontrava-se no Sinédrio, o tribunal supremo do povo judeu (anciãos, sumos sacerdotes e escribas), com poderes para prender, contando com uma polícia própria. Havia uma tensão, dentro e fora do recinto, a espera do resultado da pena que seria imposta sobre Jesus. Pedro, diante da pergunta de uma criada sobre sua identidade, ele nega três vezes que seja um discípulo de Jesus (Mt 26,30-35. 69-75).
Observação: A negação de Pedro tem sua razão no medo do clima desfavorável promovido pelo Império Romano e pela comunidade judaica. Confessar que Jesus é o Cristo e Senhor pode ser fácil na teoria e nas horas de paz; porém, é muito difícil quando se está diante da perseguição ou outras formas de conseqüências desvantajosas.
Terceira reação:
Revoltar-se contra Deus.
Contexto histórico: O livro de Números narra um episódio da passagem de Moisés e o povo israelita pelo deserto de Parã. A caminhada pelos desertos, desde o Egito, trouxe, para parte do povo, muita insegurança e desconforto. A narrativa de Nm 14,1-4 reproduz essa revolta: Todos os filhos de Israel murmuraram contra Moisés e Aarão (...) “Antes tivéssemos morrido na terra do Egito (...) e por que Javé nos traz a esta terra para nos fazer perecer (...) (v. 2-3).
Observação: A revolta do povo contra a decisão de Deus libertar os escravos hebreus atingiu de cheio a liderança de Moisés. Os livros de Êxodo e Números contam que o povo se revoltou várias vezes diante das dificuldades que a missão exigia enfrentar (Ex 14,11; 16,19-21; 17,3; Nm 11,4-6).
Quarta reação:
Reagir em fé.
(4) Reagir em fé, colocando-se nas mãos de Deus para enfrentar as vicissitudes da vida.
A Bíblia narra vários tipos de reações em fé diante das dificuldades:
1) Ser forte e firme
Contexto histórico: Após o falecimento do grande líder, Moisés, Javé escolhe Josué para substituí-lo. É tempo de dúvida e incerteza em vista da tragédia que envolveu a perda do querido comandante Moisés. É um tempo perigoso para o cumprimento da missão. E Javé adverte ao novo líder:
Sê firme,
e sê forte!
Eis que!
Tu farás este povo herdar a terra que eu jurei dar-lhes a seus pais.
(...)
Eis que! Então,
Tu prosperarás teus caminhos,
e tu triunfarás.
Não te ordenei?
Sê firme
e sê forte!
Tu não estremeças,
e tu não abales.
Eis que!
Contigo (está) Javé
teu Elohim, em tudo que tu andares (Js 1,6.8b-9).
Observação: Para Javé, a arrancada final para a chegada e estabelecimento em Canaã era o sonho dos hebreus e, muito mais do que isso: era o cumprimento da promessa feita quando eles eram escravos de Faraó. Em primeiro lugar, Javé recomendava a Josué e ao povo: sê firme e sê forte! Não pode haver medo diante dos desafios.
2) Não deixar de ler a Tora do Senhor
Contexto histórico: Os 40 anos de caminhada pelo deserto deram aos escravos hebreus uma preciosa munição. Durante a longa caminhada, eles trouxeram uma história rica de sentido e valiosa para o projeto de construir uma nova sociedade. Não se constrói nada na vida em cima de bravatas, euforias e emoções vazias. É preciso lembrar e celebrar os grandes atos de Javé em favor dos hebreus escravos. É preciso também estudar e obedecer os preceitos de Javé para construir uma comunidade feliz.
Tão somente,
Sê firme
e sê muito forte para cuidar de fazer
conforme toda a Tora que ordenou Moisés, meu servo.
Tu não desvies dela para a direita, para a esquerda,
para que tu tenhas sucesso em tudo onde andares.
Tu não apartarás este livro Torá de tua boca,
e tu monologarás nele dia e noite para cuidar de fazer
conforme tudo que está escrito nele (v.7-8 a).
Observações: Posteriormente, o compositor do Salmo 19 observou que a Torá de Javé é, realmente, o fundamento da prometida e desejada sociedade. Essa comunidade não deve ser estruturada na riqueza, no poder político e na arrogância religiosa, mas baseada na recuperação dos valores da vida plena, na restauração dos incapacitados, da valorização dos pobres e da perpetuação da alegria de todos e todas. Todavia, para que tudo isso aconteça, é preciso cuidar de fazer conforme o Ensino que o Senhor deixou.
3) Temer e servir ao Senhor.
Contexto histórico: Josué enfrentava um conflito que se estendeu por séculos: a unidade do povo em torno de Javé. Essa crise não diz respeito somente ao âmbito do culto, mas a unidade em torno da fé tem importância capital para a unidade política de Israel. Como a sociedade israelita tinha sua base no bayit, casa, Josué dirigiu-se à família como a mais antiga forma de comunhão, quer religiosa, quer política.
E agora,
Temei a Javé e
servi-o na perfeição e
na fidelidade.
Lançai fora os deuses aos quais serviram os vossos pais (...).
E se é mal aos vossos olhos servir a Javé,
Escolhei hoje a quem sirvais:
Se aos deuses a quem serviram vossos pais (...), ou
aos deuses dos amorreus em cuja terra habitais.
Mas, eu e a minha casa serviremos a Javé (Js 24,14-15).
Observação: Quando o imperador romano Constantino declarou-se cristão, ele buscou a unidade cultual dos/as seguidores/as de Cristo. Entretanto, sua intenção foi colocar o povo cristão sob a sua liderança política. O projeto de Josué foi mais abrangente: ele procurou colocar os israelitas sob a liderança de Javé.
4) Não ter medo
Contexto histórico: No ano de 701 a.C, o temível Império Assírio cercou Jerusalém. Sua tática era sufocar os moradores, impedindo que eles recebessem água, especialmente. Entretanto, o rei Ezequias (716-687 a.C), prevendo o cerco da cidade, mandou abrir um túnel para conduzir água, da fonte Gion, para dentro dos muros de Jerusalém. Os assírios não tinham idéia dessa fabulosa obra de engenharia. O Salmo 46 é fruto da superação dessa situação perigosa que poderia trazer graves conseqüências para o povo de Jerusalém.
Eloim é para nós um refúgio,
uma força,
uma ajuda na angústia muito encontrado.
Assim, não temeremos no transtornar da terra
no vacilar das montanhas no coração dos mares.
Bramam e
espumam suas águas;
estremecem as montanhas em sua altivez. Selah
Há um rio,
seus canais alegram a cidade de Eloim,
santas moradas de Elion.
Eloim está no meio dela,
ela não será abalada;
Eloim a ajuda tomar a direção da manhã (v. 2-6).
Observações: O salmista interpretou a desistência de invadir e destruir Jerusalém como uma ação salvífica de Javé. Em decorrência disso, ele declara que ter medo, diante das angústias e transtornos, é uma atitude contrária à fé em Deus. O profeta Isaías reforça esta posição, falando para o rei Acaz (736-716 a.C): Se não o crerdes, não vos mantereis firmes (Is 7,9). E o poeta popular diz: “Quem anda com Jesus Cristo não tem medo de assombração”.
5) Esperar com confiança.
Contexto histórico: Cada salmo bíblico contém uma história de vida. No Salmo 40, o compositor tinha passado por uma grave situação. Em meio à sua tribulação, ele pediu a ajuda de Javé, foi ouvido e, agora, vem agradecer Seu socorro.
Eu esperei ansiosamente por Javé:
Ele se inclinou para mim e
Ele ouviu o meu grito de socorro;
Ele me fez subir da cova desolada
do lamaçal de barro;
e Ele colocou meus pés sobre uma rocha,
Ele deu estabilidade a meus passos.
Ele pôs em minha boca uma nova canção,
louvor a nosso Deus.
Muitos verão
e temerão
e confiarão em Javé (Sl 40,2-4).
Observações: Este salmo é a reportagem da superação de um grande conflito. Ele faz lembrar a narrativa de Êxodo 3,7-9 onde Javé, em resposta aos insistentes pedidos dos angustiados escravos hebreus, aproxima dos queixosos e atende-os, tirando-os daquele “lamaçal de barro” para conduzi-los à Canaã, uma terra de mana leite e mel. O segredo é ter esperança no Senhor.
II. Na Bíblia, quando o povo de Deus enfrentava um problema, ele reunia com a sua comunidade, no culto. Como comunidade, o povo crente tinha duas cerimônias bastante citadas na história bíblica.
(5) Lamentar perante o Senhor (não sacrificar);
Contesto histórico: De fato, as lamentações não dependeram do espaço aberto na liturgia do culto público. Entretanto, os salmos de lamentação foram recolhidos a partir do culto no Templo. Esses salmos são provas históricas que a vida nos tempos bíblicos não menos angustiosa do que em nossos dias. Todavia, um detalhe é bastante saliente nessas lamentações: o povo crente queixava, porque confiava na pronta ação de Javé. Eis o exemplo do Salmo 12.
Salva Javé!
Eis que!
O leal está no fim.
Eis que!
Desaparecem os fiéis dentre os filhos de Adam.
O leal está no fim.
Eis que!
Desaparecem os fiéis dentre os filhos de Adam.
Falsidade eles falam cada um ao seu amigo:
Lábios bajuladores e duplo coração eles falam.
Javé corta todos os lábios dos bajuladores,
a língua do que fala grandezas,
que dizem: por nossas línguas seremos fortes,
nossos lábios (são) nossos.
Quem (é) senhor para nós?
Da violência dos miseráveis,
Da violência dos miseráveis,
do gemido dos empobrecidos,
agora, eu levantarei, diz Javé:
Eu porei em salvação. Ele respirará para ele.
Eu porei em salvação. Ele respirará para ele.
As palavras de Javé (são) palavras puras,
prata refinada na entrada para a terra
que é purificada sete vezes.
Tu, Javé, nos guardarás,
Tu os protegerás dessa geração para sempre.
Por toda parte, os malvados andam,
quando é exaltada a vileza para os filhos de Adam (Sl 12).
Tu os protegerás dessa geração para sempre.
Por toda parte, os malvados andam,
quando é exaltada a vileza para os filhos de Adam (Sl 12).
Observações: Este é uma lamentação comunitária, em vista de uma situação muito grave na comunidade. O salmista pede urgência na solução desse conflito. A ocorrência de, pelo menos, 40 composições com esse tipo literário, leva a crer que havia um espaço na liturgia do culto para as pessoas expressarem suas lamentações. No Salmo 12, o grupo queixa de pessoas más, da sua comunidade, que agridem, especialmente, com palavras. Apesar de sua angústia e decepção, os lamentadores confiam na atuação de Javé.
B. Trazer à memória a história da salvação (Páscoa).
Contexto histórico: A celebração da Páscoa é amplamente registrada do AT e NT. Não se trata de uma mera churrascada. A carne assada, para todos os familiares e agregados tinha um caráter significativo. Eles reuniam para trazer à memória a história da salvação do povo hebreu. Era preciso lembrar intensamente para que a nova geração soubesse que Javé está sempre pronto a ouvir o grito de angústia do povo oprimido, e libertá-lo de todo tipo de opressão.
(...) Quando vossos filhos vos perguntarem: “Que rito é este?”
Respondereis:
É o rito da Páscoa para Javé que passou adiante das casas
dos israelitas no Egito, quando feriu os egípcios, mas livrou
as nossas casas (Ex 12,26,28).
Observações: Ao longo dos séculos, o povo bíblico celebrou a Páscoa como um memorial da libertação dos hebreus do Egito. É um sinal, isto é, anuncia o milagre da transformação de um povo escravizado em comunidade liberta pela intervenção milagrosa de Deus. A celebração da Páscoa, assim, nutre os celebrantes para a caminhada, enfim, para os embates próprios do dia-a-dia do povo crente. Antes de enfrentar os episódios da “paixão” e “morte”, Jesus prepara os discípulos para os desafios da vida, e diz: (...) no mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo (Jo 16,33).
Contribuição nas aulas de exegese do Dr. Tércio Machado Siqueira, professor na Fauldade de Teologia da Igreja Metodista
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